OPINIÃO
* Por Letícia Lefevre
Um panorama crítico sobre os ataques aos direitos da pessoa com deficiência, autismo e outros transtornos do neurodesenvolvimento, o uso político desses direitos e o papel da sociedade em um ano decisivo.
Os dados mais recentes do Censo 2022 (IBGE) mostram um cenário que precisa ser levado a sério:
📌 14,4 milhões de pessoas com deficiência no Brasil — 7,3% da população com 2 anos ou mais.
📌 2,4 milhões de pessoas diagnosticadas com Transtorno do Espectro Autista (TEA).
Esses números revelam algo fundamental: estamos falando de uma parcela enorme da sociedade de eleitores, consumidores, estudantes, trabalhadores, usuários do SUS e da educação básica e superior.
E é justamente por isso que, em ano eleitoral, a pauta da deficiência passa a ser disputada como narrativa política. Às vezes com responsabilidade. Mas muitas vezes… apenas como slogan.
E aqui está o ponto: não é possível falar de Brasil, democracia ou políticas públicas sem incluir, de forma séria, as pessoas com deficiência, neurodivergências e doenças raras em todas as decisões.
⚖️ Planos de Saúde em 2026: mais judicialização x avanço dos lobbies
A relação entre famílias e operadoras de planos de saúde nunca esteve tão tensionada, especialmente quando falamos de pessoas autistas, pessoas com doenças raras e pessoas com deficiência.
Nos últimos anos, vemos um movimento claro:
✅ O Judiciário segurando as pontas
O STJ tem reiterado que os planos devem custear terapias multiprofissionais essenciais, ABA, fonoaudiologia, terapia ocupacional, psicoterapia, sempre que houver prescrição por profissional habilitado, especialmente nos casos de TEA.
Sem essa atuação, diversos estudos mostram que grande parte desses tratamentos simplesmente não seria oferecida pelas operadoras, que seguem tentando reduzir custos, mesmo quando isso viola direitos fundamentais.
E se não houvesse tido tantas judicializações, grande parte dessas pessoas teriam migrado para o SUS (Sistema Único de Saúde) colapsando o sistema, que já vive em grande demanda. Então se você não tem plano de saúde, esse problema é seu também, porque o resultado final dessas ações vão impactar a sua vida.
❌ Cancelamentos unilaterais continuam crescendo
Isso tem atingido, inclusive, famílias com dependentes com deficiência ou TEA. Mesmo sem qualquer inadimplência, operadoras encerram contratos sob o argumento genérico de “reestruturação da carteira”, deixando famílias desamparadas, vulneráveis e obrigadas a reconstruir toda a rede de cuidado do zero.
Sim, há mecanismos legais para contestar e reverter esse tipo de abuso. Mas aqui entra a pergunta que incomoda:
👉 Será que todas as famílias têm acesso a um advogado especialista para enfrentar uma operadora de saúde?
Afinal, você não marca consulta com um oftalmologista quando precisa operar o pé. Cada área tem sua especialização, no direito à saúde não é diferente.
🏢 Planos empresariais “de fachada”?
Muitas famílias, tentando fugir de mensalidades altíssimas, recorrem aos planos empresariais por adesão. O problema? Operadoras passaram a encerrar contratos formados apenas por membros de uma mesma família, classificando como “risco concentrado”. Ou seja: quando a família mais precisa, o plano simplesmente desliga o interruptor.
📚 Os impactos do tema 1234, do STJ em relação aos medicamentos não incorporados pelo SUS, mas registrados pela ANVISA.
O Tema 1234 do STF redefiniu o caminho judicial para quem precisa de medicamentos não incorporados pelo SUS, mas registrados pela ANVISA. O acesso ficou mais técnico, mais restritivo e muito mais desigual. Na prática, pessoas com doenças raras e suas famílias enfrentam barreiras que podem custar vidas.
Isso cria uma estrutura clara de judicialização estrutural: muitas terapias para doenças raras, deficiências graves ou tratamentos fora dos protocolos padronizados dependem de decisões judiciais para garantir acesso. E isso não é democrático, especialmente pela falta de conhecimento de pessoas mais vulneráveis, que não sabem nem por onde começar o processo, ou tem que esperar uma vaga nas defensorias públicas.
💡 O que isso revela?
Que estamos diante de um cenário onde:
o Judiciário vira barreira de contenção,
o lobby das operadoras aumenta,
e as famílias seguem na linha de frente para garantir direitos mínimos, especialmente o direito a uma vida digna.
Tudo isso em contraste direto com o direito constitucional à saúde (art. 196), com a Lei Brasileira de Inclusão, Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista e Programa de acompanhamento integral para educandos com dislexia, Transtorno do Deficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) ou outro transtorno de aprendizagem, todas essas normas que asseguram atenção integral à pessoa com deficiência e/ou necessidades específicas, inclusive no âmbito privado.
Tendência para 2026
Mais pressões dos lobbies dos planos para baratear e dificultar o acesso à saúde:
Mais judicialização, porque as famílias continuarão recorrendo ao Judiciário para garantir cobertura.
Impacto direto nas pessoas com deficiência e TEA
A demora ou negativa de tratamento compromete desenvolvimento, autonomia e participação social, violando a Constituição (art. 1º, III – dignidade da pessoa humana) e o direito à saúde (art. 196), além da Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto nº 6.949/2009) e da LBI (Lei nº 13.146/2015).
Inclusão escolar: unificação de “profissional de apoio” e “cuidador”
A educação inclusiva para estudantes autistas e com deficiência é estruturada pela combinação entre:
A Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência é o principal tratado internacional de direitos humanos voltado à inclusão, acessibilidade, dignidade e participação plena das pessoas com deficiência em igualdade de condições com as demais.
Ela entrou no ordenamento jurídico brasileiro com força constitucional. e foi aprovada pelo Decreto Legislativo nº 186/2008 que aprovou o texto da Convenção e do Protocolo Facultativo e pelo Decreto nº 6.949/2009 que promulgou a Convenção e dá a ela status constitucional, colocando-a acima das leis e no mesmo nível da Constituição Federal.
Constituição Federal/1988 – baseada nos direitos humanos garante um novo paradigma democrático no país, estruturando o Estado brasileiro sobre quatro pilares:
✔️ Dignidade da pessoa humana (art. 1º, III)
✔️ Cidadania (art. 1º, II)
✔️ Igualdade (art. 5º)
✔️ Erradicação da pobreza e redução das desigualdades
Lei nº 9.394/1996 (LDB) – garante atendimento educacional especializado (AEE), adaptações razoáveis e organização de recursos de apoio;
Lei nº 12.764/2012 — Lei Berenice Piana – Reconhece o autista como pessoa com deficiência (art. 1º, §2º), institucionaliza a política nacional de proteção e assegura direitos em saúde, educação, assistência social e demais políticas públicas. Especialmente, garante o acompanhante especializado para o aluno autista.
Lei nº 13.146/2015 (LBI) – assegura escola comum inclusiva, vedação à recusa de matrícula e oferta de apoios necessários;
Decreto nº 12.686/2025 – atualiza diretrizes da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, reafirmando o AEE, a obrigatoriedade de acessibilidade e a organização dos serviços de apoio escolar;
Decreto nº 12.773/2025 – define parâmetros para o profissional de apoio escolar, distinguindo-o de cuidador, regulamentando atribuições, formação mínima e condições de oferta pela rede pública e privada.
Onde está a polêmica para 2026? Muitos estados e municípios estão:
a confusão de nomenclatura e definição dos papeis de quem exerce as funções na inclusão escolar, inclusive qual o papel do acompanhante terapêutico.
unificando, na prática, a figura do “cuidador” com a do “profissional de apoio”, como se fossem a mesma função;
terceirizando ou contratando com baixa formação e salários precários;
reduzindo número de profissionais, tentando fazer “um para a escola inteira” o que é incompatível com o direito à inclusão individualizada.
Risco jurídico e pedagógico:
A LBI (art. 27 a 30) e a Convenção da ONU garantem educação inclusiva em todos os níveis, em igualdade de condições, com os apoios necessários.
Se o “apoio” vira só “cuidado físico”, sem suporte pedagógico, a criança com deficiência ou TEA fica matriculada, mas não incluída: não aprende, não participa e permanece segregada dentro da própria sala de aula. Cada um tem seu papel na inclusão escolar.
Ao aluno com deficiência e/ou necessidade específica é garantida a matrícula, a permanência e o aprendizado significativo.
BPC/LOAS: “pente-fino”, cancelamentos e 2026
O BPC/LOAS (Lei nº 8.742/1993) é um benefício assistencial para pessoas idosas e pessoas com deficiência em situação de vulnerabilidade, garantido sem exigência de contribuição previdenciária.
Nos últimos ciclos:
O Governo Federal atualizou regras do BPC, exigindo atualização periódica do CadÚnico, sob pena de suspensão.
Agora exige a biometria para liberação do benefício e atualização dele, considerando que boa parte dos beneficiários são idosos ou pessoas vulneráveis, analfabetos digitais, sem acesso a celulares, fazendo com que eles fiquem ainda mais à margem da sociedade
Tem sido divulgado e implementado um “pente-fino” nos benefícios, revisando milhares de casos e gerando cortes, suspensões e pedidos de devolução de valores.
Tendência para 2026:
Continuidade dos processos de revisão em massa, com:
Crescente conflito entre a lógica fiscal (cortar gastos) e a lógica de direitos humanos (proteger renda mínima de pessoas com deficiência e famílias vulneráveis).
Isso dialoga diretamente com a avaliação biopsicossocial prevista na LBI (art. 2º, §1º e art. 6º) e com o art. 203, V, da Constituição, que garante o BPC como direito fundamental, não como “favor do Estado”.
LBI com 10 anos: avanços sem regulamentação completa
A Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015) completou 10 anos em 2025. Mas o que mais vimos em 2025 foram ações de retrocesso, em prol da pessoa com deficiência.
Alguns artigos já foram regulamentados por decretos, mas outros não, principalmente, quando falamos de avaliação biopsicossocial.
Impactos dessa falta de regulamentação:
Municípios e estados ficam “perdidos”, cada um cria uma regra diferente e a pessoa com deficiência vira refém do CEP onde mora.
A judicialização cresce, porque as famílias precisam recorrer ao Judiciário para “preencher a lacuna” normativa.
Fica mais difícil punir efetivamente empresas e órgãos que descumprem acessibilidade, pois o “como fazer” não está detalhado em todos os pontos.
Ano eleitoral: deficiência e autismo tratados como “commodities”
A ideia central é: ➡️ commodity é aquilo que o mercado trata como substituível, padronizado e sem valor individual próprio.
Conforme define Paul A. Samuelson:
“Commodities são bens básicos, indiferenciados, produzidos por muitos e consumidos por muitos, cujos preços são determinados no mercado como se fossem perfeitamente substituíveis”.
Por isso, quando dizemos que a pauta da deficiência vira “commodity” em ano eleitoral, significa que ela passa a ser tratada como algo trocável, instrumental, usado para gerar valor político, e não como um direito fundamental ligado à dignidade humana.
Em ano de eleição municipal, estadual ou federal, a deficiência vira:
foto em campanha,
promessa genérica de “inclusão”,
pauta usada para humanizar discursos, mas sem metas, orçamento ou normas concretas.
E lembre: segundo o Censo 2022, 7,3% da população tem deficiência e uma parte desse grupo vota diretamente; outra parte influencia voto da família e de cuidadores, se analisarmos esses dados, aproximadamente 21,9% da população tem interesse direto ou indireto nessa pauta.
Por isso, alguns políticos tratam a deficiência como “ativo eleitoral”: prometem muito, mas, na hora de votar, apoiam projetos que:
reduzem orçamento de políticas de acessibilidade;
flexibilizam proteção trabalhista;
dificultam acesso a benefícios;
fragilizam educação inclusiva
precarizam a saúde.
Como cidadão, o que fazer na prática com o seu voto?
Aqui entra sua parte – simples e poderosa:
A) Anotar quem você pretende votar
Pegue um caderno, uma agenda ou arquivo digital e, para cada cargo, escreva:
Nome do candidato;
Número;
Partido;
Cargo (vereador, deputado, prefeito, governador, senador, presidente).
B) Pesquisar o histórico
Para cada pessoa em quem você pensa em votar, verifique:
Ele(a) já votou contra ou a favor de projetos que afetem:
Ele(a) participa de frentes parlamentares de defesa da pessoa com deficiência ou, ao contrário, apoia projetos que restringem acesso a direitos?
Ele(a) só aparece em período eleitoral nas pautas de deficiência?
Você pode usar:
sites oficiais do Congresso e Assembleias Legislativas;
portais de transparência;
páginas de notícias sobre votações;
relatórios de entidades da sociedade civil (conselhos, movimentos de pessoas com deficiência).
C) Anotar em quem você vai votar e o que vai cobrar
Ao decidir, registre:
“Vou votar em X para vereador/deputado/etc.”
“Minhas pautas prioritárias para cobrar”:
Depois, durante o mandato, mande e-mails, mensagens, participe de audiências públicas cobrando aquilo que você anotou. Isso é exercício de cidadania, não tem partido específico.
O que qualquer cidadão pode fazer nessa luta (mesmo não tendo deficiência)
Você não precisa ser pessoa com deficiência ou parente para entrar nessa briga. Alguns caminhos concretos:
A) Informar-se com base em dados, não só em posts virais
Acesse materiais oficiais sobre LBI e direitos da pessoa com deficiência, como cartilhas de tribunais e do próprio governo federal.
Use dados do Censo sobre deficiência e TEA para embasar debates na escola, no trabalho e na comunidade, eles são escassos, mas existem alguns.
B) Participar de espaços de controle social
Conselhos municipais e estaduais da pessoa com deficiência;
Audiências públicas sobre Plano Nacional de Educação, planos municipais de educação, PPA, LDO, LOA;
Consultas públicas da ANS, MEC, MDHC sobre saúde, educação e acessibilidade.
C) Exigir acessibilidade em todos os espaços
Para todas as deficiências (física, mental/psicossocial, sensorial, intelectual), você pode:
Questionar escolas, faculdades, empresas e órgãos públicos sobre rampas, elevadores, banheiros adaptados, sinalização tátil, Libras, legendas e audiodescrição;
Apoiar colegas com deficiência em pedidos formais de ações e produtos pensados de acordo com o desenho universal, e quando não for possível, ajudá-los a requerem a adaptação razoável, como permite a LBI (art. 28, §1º).
D) Defender BPC e políticas de renda em vez de reforçar preconceitos
Combater frases como “todo mundo recebe benefício sem precisar”;
Explicar que o BPC é direito constitucional para quem vive em vulnerabilidade, não “privilégio”;
Apoiar famílias que estão passando por pente-fino e não entendem notificações, ajudando a buscar orientação jurídica ou da assistência social.
Em resumo: 2026 é ano de escolher lado
Para as pessoas com deficiência, autismo e com transtornos do neurodesenvolvimento, 2026 tende a ser um ano de:
disputa intensa na saúde pública e na saúde suplementar,
pressão por “baratear” a inclusão na escola,
cortes e revisões em benefícios assistenciais,
uso político da pauta da deficiência sem compromisso real com orçamento, metas e normas.
Diante disso, o papel de cada cidadão com ou sem deficiência é interessante:
Conhecer a lei (LBI, LOAS, Convenção da ONU).
Usar o voto com memória, anotando quem você escolheu e cobrando coerência.
Participar dos espaços institucionais e da sociedade civil.
Não naturalizar o capacitismo: direito não é favor, e acessibilidade não é luxo.
Se cada pessoa assumir uma parte dessa responsabilidade, a deficiência deixa de ser “commodities” eleitoral e volta a ser tratada como o que é na Constituição: tema de dignidade humana, justiça social e igualdade de direitos.
👉 Se este conteúdo fez sentido para você, curta, comente e compartilhe. A defesa dos direitos das pessoas com deficiência exige informação qualificada, memória política e responsabilidade social — e começa com cada um de nós.
💬 Sua experiência importa: profissionais do direito, saúde, educação e gestão pública, deixem nos comentários como essas mudanças têm impactado vocês. Construímos inclusão de forma coletiva, crítica e permanente.
📌 E lembre-se: 2026 não é ano para slogans. É ano para compromisso. Acompanhe seus candidatos, cobre coerência e proteja direitos
* Letícia Lefevre é Advogada | 👩👧👦 Especialista em Direitos da Pessoa com Deficiência e da Criança | 📢 Community Manager | 👩🏫 Pedagoga | Fundadora do Grupo Crianças Especiais
ARTIGO ORIGINALMENTE PUBLICADO EM:
https://www.linkedin.com/posts/leticia-lefevre_o-brasil-em-2026-o-que-est%C3%A1-em-jogo-para-activity-7404265771952222208-OBuE?utm_medium=ios_app&rcm=ACoAAAZQjOQBEpxmg7W7CWf6tRfqiRh_5kO5xX0&utm_source=social_share_send&utm_campaign=copy_link
Fonte https://diariopcd.com.br/quando-a-deficiencia-e-autismo-viram-commodities-reflexoes-para-2026/
Postado Pôr Antônio Brito